Distopia: lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. Distopia é o contrário do sonho, a antítese da esperança. O Auto de javalis e unguentos, de Helder Herik, é a narração de uma distopia, uma distopia possível.
Os versos deste poema apocalíptico doem, fazem ranger os ossos. Auto de javalis e unguentos provoca arrepios. É que a distopia está logo ali. Bate à nossa porta e trememos com a possibilidade da abertura.
Se o leitor é crítico e socialmente sensível vai ver o Auto de javalis e unguentos no jornal nacional, nas ruas, na sujeira nas pernas das crianças abandonadas (jorro de algum cidadão de bem?), nas notícias que se acumulam no dia a dia e que vão montando um paradoxo: uma distopia possível.
O poema é a divagação do poeta, uma divagação poética escorada numa possível realização (arrepios), uma denúncia, um prenúncio, um poema/quase/profecia.
Auto de javalis poderia ser numa estrada num deserto australiano em busca desesperada de gasolina, mas não é um filme é um poema/quase/profecia, poderia ser no depois do amanhã mas é um poema/quase/profecia (arrepios).
Este auto é um poema/opressão, um poema/desespero, um grito que nos alerta para um muito possível futuro, poema/quase/profecia. Nele, há privação de amor, privação de vida, privação de humanidade. É um alerta “abrindo fendas. cancerando. mastigando. repisando. cuspindo cuspindo”. É a agonia dos bombardeados, a dor no pulmão dos sufocados, a angústia dos abusados. Degradação das gentes, opressão.
Auto de javalis e unguentos é um aviso, um poema/quase/profecia. É uma ponte muito pequena entre o agora e um possível quase/futuro. É dor de brasileiros e nordestinos, é o ser humano em pedaços, vagando em escombros, se urinando de desespero, é fezes pós-estupro (arrepios), é um chute na cara do Brasil.
É guerra fratricida em nome de Deus, é um espelho onde o leitor pode enxergar melhor seus medos. É a imposição moral dos imorais, é a oração depois da maldade. É a oportunidade de repensar.
Leia o Auto de javalis e unguentos, de Helder Herik. É preciso uma poesia que provoque arrepios, que nos fale das possibilidades quase/proféticas de uma amanhã que estamos construindo a cada dia.
Poesia é para doer. Poesia é para sangrar, rasgar e costurar. Auto de javalis e unguentos: uma oportunidade de perder o ar para poder pensar na possibilidade de outros ares. Auto de javalis e unguentos: noventa pás de terra para nos mostrar que o futuro, quase/próximo, pode ser a morte de tudo.
Helder Herik lança “Auto de javalis e unguentos” no sábado, dia 23, às 19h, na Praça da Palavra.
SINOPSE DE AUTO DE JAVALIS E UNGUENTOS
Um dos vencedores do Prêmio Hermilo Borba Filho em 2021, este poema dramático apresenta o controvertido patriarca Zózimo, juiz dos acontecimentos passados e futuros, anti-herói que tanto pode existir na literatura como na casa vizinha, tido como "cidadão de bem" mas que no fundo cultiva o ódio, extravasado contra as mulheres, as minorias e desvalidos.
Texto - Pedro Henrique Teixeira | Guia do FIG
Que resenha formidável! Parabéns ao resenhista e, principalmente, ao Helder Antonio Mário Bastos (tonhodopaiaia.org)